As cores borradas criam uma náusea matinal que há muito não me visitava. Corta o vento da esquerda para a direita com um sadismo inédito. Os ônibus desafiam as calçadas e quase raspam as guias com seus sapatos redondos e emborrachados. Ainda há fluxo, as artérias abrem vazão para os insetos de duas rodas a zumbir, zombando, ziguezagueando de tudo. Ambulâncias adensam o desespero do dia recém-nascido, preenchem com seus gritos vermelhos o corredor formado. De todos os tamanhos e pouca variedade de cores, motoristas em suas cabines desfrutam de alguma música ou desfazem-se no calor ainda tímido da primavera. Camisa quase gruda no tórax, o esbaforir acelera a respiração numa intermitência de não saber onde vai dar. Contra a horda, tento acelerar o passo. Estanco. Voltam a cruzar as máquinas, com a novidade de alguns ciclistas a bailarem, com seus talentos de equilibristas e ativistas, na corda-bamba da metrópole. Em pé, os rebanhos são transportados certos do cruel destino dos pontos finais. O sapatear dos saltos silencia. No canteiro central, a morte ameaça pelas costas e, à frente, o tráfego contrai a ansiedade do passo não dado.
O torpor do ar ajuda a recobrar o alinhamento. As roupas voltam para o lugar, a testa está mais seca e o perfume ainda relembra o frescor do banho. Ainda é cedo para se perder. Vermelho. Imposição para que o tempo pare. Limite. Pigmento do proibido. Regra. Adiantar-se a ela, arriscar uma coreografia contra o automatismo, fechar os olhos e lançar-se perante o horizontal abismo do acordo, ouvir mais de perto as músicas, os sons, o bradar das indignações, o reclamar conservador dos incomodados. Seguir, mover os músculos além da limitada imaginação, sorver em goles transbordantes o fervor do pânico, infringir o arrepiar de espinhas, tatear e violar o medo com mãos famintas.
Nunca mais o semáforo abrirá. Avanço.