Uma densa e herbácea névoa transformava por completo o descampado que ficava logo à frente do prédio onde lecionava. O cobertor de breu lançado pela noite escondia sorrisos, semeava paranoias, explicitava cheiros diversos, desnudava cortinas de ombros desinibidos, à mostra.
O verão ainda não aparecera na umidade das peles ou no encurtar dos vestidos, embora fosse possível notar sorrisos de maior curvatura nos inconsciente de todos os que ali estavam. Notava-se uma concordância coletiva, um dar-de-mãos oculto a transformar os presentes em cúmplices nos pequenos crimes das horas adiante.
Nenhuma música era familiar. Quando recordava a letra ou melodia, agrupavam-se em um tom jocoso, como se o passado fosse uma infinita caixa de surpresas não tão elegantes assim. Brindavam seus copos descartáveis, moviam-se num bailado imprevisível, reuniam-se como polvos submersos em uma massa de sons e luzes fugidias, espectros, avatares, rompantes e depressões alternadas em milésimos de segundo.
Observava, resguardando certa distância, acossado pela trincheira invisível imposta talvez pela idade, preguiça, experiências malfadadas, medos e outros fantasmas terapêuticos. Acima da massa nebulosa, as estrelas contemplavam o ocorrido com a tranquilidade de uma testemunha jamais notada.
Sentiu-se abraçado por cordas espessas. Ainda com a chave do carro pressionada pela mão direita, vira-se na eternidade entre retroceder e avançar. Campo da vulnerabilidade onde se perdem as guerras. Vacilante estado entre defesa e ataque. Vácuo a rechear o tempo com a mais salgada angústia, momento de imensa interrogação fibrosa, contração muscular carcereira do suspiro aliviado – ou entregue.
O tecido dos sapatos não pôde conter a umidade laminada da grama. Guardou os óculos no bolso da calça e mergulhou. Estrangeiro, estranho, desconhecia a etiqueta do local, ou da idade. Esbarrava em cervejas, atrapalhava beijos, desatava abraços, cruzava a multidão em busca de um ponto de equilíbrio – um tronco discreto que o salvasse da correnteza. Arrependeu-se de esquecer o celular no carro. Se deixasse o local naquele instante, não teria coragem de retornar.
Reparou em algumas salas abertas e, em um lapso protocolar, aventou ir atrás de algum segurança para denunciar o ocorrido. O alarmismo motivou um arco-reflexo, precisava tomar alguma providência de acordo com os sussurros conservadores ainda restantes, feito migalhas, em seus delírios despertos. Míope, era incapaz de encontrar alguém voluntariamente. Novo esbarrão.
Angulou o olhar para baixo. Reconheceu os globos lápis-lazúli cravejados nos olhos dela. Sem pensar, segurou em seus braços como se desejasse salvá-la de uma queda já não mais iminente. A alma debatia-se no fervor daquela máquina do tempo, o olfato aguçara-se inesperado, a boca encheu-se de saliva em nova paralisia. O descompasso entre seu ritmo e aquela horda juvenil atingira o ápice. Despercebido e desapercebido: denunciado.
Anunciara, surpresa e orgulhosa pela infame descoberta, sua presença. Um maremoto de sangue fervente concentrava-se absoluto na face rubra, exposta, nua. Descoberto, rodeado, espiralado pelo caos de um contratempo a digerir, desafiar, tirar para dançar o maquinismo dos seus previsíveis e confortáveis movimentos. Desaprendera os passos, aplainara o terreno de seus nervos, estruturara em perfeitas etapas o ir e vir, o comer e dormir, o ler e expelir, o beijar e o partir. Toda a receita esmagada e jogada longe. A mão lápis-lazúli tomou seus longos dedos e passou a conduzi-lo. Voltava ao maremoto, desta vez reconfortado por uma palma quente, a desencadear um sorriso pueril, plantando na velocidade das luzes uma distanciada sensação de estar em si, anos antes. À frente, ela virava o rosto em alguns momentos, ciosa por certificar-se da segurança do guiado. Tímida e confiante, repousava lentamente os globos azuis sobre o relvado – e seguia.
Os tendões esticados daquele breve minuto arrebentaram em um balcão no outro lado, onde havia outros tipos de bebidas baratas. Já não reconhecia os nomes das vodkas falsificadas, nem mesmo das substâncias-moeda que congregavam os passantes em um idioma comum. Sem controle sobre o próprio destino – dizem que é algo inventado -, permitiu que alguém desenhasse o futuro de sua corda-bamba. A mão direita estava preenchida por um copo gelado, transparente, com alguns cubos de gelo a boiar em um líquido suspeito.
A menina recomendou que bebesse; obediente, tragou. A quentura descia pelos tubos, misturava-se às entranhas controversas, ebuliam feito mar e rio em espumas brancas, barrentas, com a violência dos sopetões aos quais fora submetido em tão poucos minutos. Lápis-lazúli e seus cabelos lisos deixavam-no novamente às moscas, como se houvesse lhe dado as pistas suficientes para sobreviver por ali.
Engoliu, seco, o porvir. Pensou em livros, citações, filmes, músicas, todo o arsenal aparentemente inútil naqueles tremores frenéticos das gargalhadas, línguas, salas ocupadas por orgias e amores recém-nascidos. Desaprendera a fumar. A falar; pensar; encantar; chegar; mover-se.
Outro trago. Deslocava-se e sentia-se aconchegado pelas misturas e o flutuar evidente por entre os corpos exultantes da ocasião. Ao redor, a profunda escuridão das árvores que, provavelmente, abrigavam o parir de mais histórias fornicadas pelo adubo de um tempo comido com dentadas desesperadas, a ponto de faltar fôlego para mastigar porções vultosas como aquelas.
As articulações já se dobravam feito os sinos que lera dias antes; rendiam-se à dissonância das não-canções. Sucumbia à coreografia antropológica que, zeloso, examinava de lupa. Perfumes adentravam sem credenciais; gostos envolviam os mares virgens da boca em solene calar; frutas, seios, pernas, nomes, braços, aneis, números, tormenta.
Lápis-lazúli ofuscaria seus olhos cansados, horas depois, atenta a sua aula repleta de segredos.