suportar a própria companhia passa longe da dúbia aceleração de todos rumo ao lugar nenhum. fugir-se: a regra. em outros personagens, variações de si, produtos, viagens, sonhos, fantasias. na escuridão lépida do túnel, a desilusão portátil reflete, ofusca no brilho das telas. mensagens de texto cancelam compromissos, distribuem amores, pedem desculpas, arriscam conquistas, ordenam, concedem, apelam. vozes murmuram intervaladas por contraltos empolgados com a própria irritação ou alegria. distraídos, todos. unidos na silenciosa angústia do outro.
mas havia, na profusão das pequenas janelas, uma outra. antiga, naturalmente carcomida. lavrada com alguma dor, é certo. desenhada na minúcia de cada página. saboreada no torpor dos caracteres. sincopada no dedilhar das teclas.
contemplada em ato-contínuo, atravessou no seu próprio tempo as estações. entraram e saíram aos montes. sirenes, correria, esvaziamento. impassível, ela continuava. decote de óculos escuros. concentrada a ponto de afugentar o mais corajoso dos curiosos. submersa, deleitava-se. abria um leve sorriso. não estava ali.
havia algo de dourado nos cabelos – e de proposital na camisa recortada. as mãos delicadas sustentavam a janela com o cuidado de relíquia. de fato, em um momento de entreabrir, havia uma dedicatória nas primeiras páginas. poderia não ser seu, mas parecia. dialogava em silêncio com as palavras recém-descobertas. a ela, agora, pertenciam: nada mais íntimo na máxima exposição do vagão.
ganhou dos pais, em um desses aniversários recentes. ou de um namorado já partido. talvez encontrado fortuitamente em uma livraria dessas enormes, em que se vendem até livros. trocado com alguma amiga entediada. impulsivamente consumido antes da ponte aérea. recebido em um café, de mãos desconhecidas, após um silêncio preenchido por beijos imaginários. deixado de lado por um professor apressado. doado, repousando em um espólio.
estavam vivos: ela e o livro.