Elas não falam

José nem bateu à porta naquele dia. Foi direto para a cozinha e surgiu em meio ao vapor branco do espaguete para surpreender Marisa. Já são muitas décadas para ela perceber um gesto desses de bate-pronto. Ele insistiu até que a esposa desse a atenção requerida pelo solene momento. Impaciente, deixou a colher de pau submergir na panela até o som das borbulhas se tornar menos relevante que o sorriso quase esquecido do seu homem.

Do outro lado da cidade, Rubens fazia o mesmo agrado a Carlos para arrancar o tímido abraço de sempre; Cinira apressou-se para não deixar o regalo passar do tempo; Marquinhos ofereceu à mãe; Helena, ao esticar os braços, quebrou as pernas de Henrique, cuja voz armada já tomava impulso para saber o porquê da chegada tardia.

Roberto levou consigo para o aeroporto, de onde faz as despedidas costumeiras da cidade. A turista alemã, na rodoviária, buscava o ônibus para descer a serra enquanto lutava contra a imensa mochila às costas. Vivian esqueceu no banco de trás do táxi e arrependeu-se profundamente: tinha planos, assim como Renata – mas ela esbravejou por não ter levado uma a mais. Luciano, sozinho, divertia-se com suas lembranças ao ver o tempo passar rápido pelo túnel de cimento. Com aquilo na mão, Janice era, de fato, a última bolacha do pacote no povaréu da estação Vila Matilde.

Confesso não ter checado a veracidade da notícia, embora a prática do jornalismo em alguns cantos atenue minha penitência. Mesmo assim, fatos como esse acrescentam uma pitada de sonho à correnteza entediante da rotina. Dizem que foi no metrô de São Paulo: um homem comprou todas as rosas (ou flores, mas rosas são mais bonitas) de um ambulante para distribui-las por entre os cidadãos enlatados no vagão. Dá para imaginar a surpresa dos solteiros desistentes; a resistência dos burocratas engravatados; o sorriso banguela da criança; o senhor no banco dos idosos – espero que alguém tenha respeitado o seu direito – a ver um suspiro de cortesia diante da indiferença massiva dos celulares. Não sei quem fez a distribuição dos presentes – o vendedor, o comprador, ou se ambos dividiram a tarefa de quebrar o gelo personificado por cada um dos paulistanos ali ausentes.

Admitindo ou não, saíram dali com uma lufada de paixão. Não pensaram automaticamente em apostar corrida com os demais rumo à escada rolante; deixaram de lado as ombradas violentas e o jogo de corpo para se livrar da estação. Devem ter protegido as pétalas como a um filho.

Provavelmente eu estava encarcerado no trânsito, desfrutando do ar condicionado e uma música furtiva no banco de trás do carro alheio – embora pudesse solicitar uma canção diferente, se quisesse. Havia balas e água. Perdi a chance de observar todos aqueles olhos brilhando por um motivo que não uma tela repleta de joguinhos, pequenos golpes e notícias inúteis. Talvez não saberia o que fazer com o botão de rosa: seria um belo ensejo para retomar contato ou ao menos encheria um vaso para conservá-lo até que se lembrasse de mim. Mas ela não gosta de flores e, faz um tempo, seu amor murchou.

Sobre Rodolfo Araújo

Jornalista, amante do teatro, um (des)crente (in)constante.
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